sábado, 24 de dezembro de 2011

A Última Convenção

De volta à vida, normal e cotidiana, o homem respirava aliviado ao entrar no escritório.


O Sr. Malachias não tardava como sempre, pouco importava que fosse um ponto facultativo em pleno verão.

_Sr. Idalgo nós estamos em pleno mês de janeiro, recém chegados das festas das férias coletivas e o Sr. me aparece no escritório sem fazer a barba! Ora, Ora Sr. Idalgo tantos anos de trabalho e o Sr. Agora resolveu ficar relapso.

_Mas ontem eu fiz a barba depois do jantar, será que cresceu tanto?

__Quem morreu ontem hoje está frio, chapa.

Disse isto já abrindo a porta de seu gabinete sem deter-se, deixando Idalgo mais frio que o morto da véspera.

No fundo, nosso Assistente Administrativo ficara satisfeito, lisonjeado mesmo, ao ser admoestado assim, diante de todos.

Afinal ele vinha de um mundo onde não havia reprimendas nem caras feias, onde abundavam sorrisos e abraços sinceros _ feliz natal.

Era preciso criar coragem e responder 9601 vezes “feliz natal” completar “pra você e pra família”. Era preciso falar com pessoas cuja existência nunca havia notado e ainda sorrir, atravessar o natal e comer a última convenção em forma de peru, por que assim ficara decidido. Assim seria, quisesse ou não.

Agora o som agradável da voz do chefe que lhe surripiava horas extras, que inventava serões para dizer ao patrão que seus subordinados eram dóceis e que ele economizava o dinheiro da empresa, parecia-lhe bálsamo, perfume silvestre.

Uma vez mais a dona Flora entrou no gabinete do Sr. Malachias e atribuiu o atraso do relatório anual de vendas a uma suposta inoperância de Idalgo. Mas desta vez, nosso homem ouvira com prazer indizível aquela acusação de Dona Flora.

Antes isto que os presentes de “inimigo” secreto, as visitas familiares de fim de ano que têm como objetivo averiguar a vida do visitado para produzir o álibi necessário aos comentários desairosos que ocorreriam durante o ano novo, que todos desejaram que fosse ótimo, próspero e o mais.

Agora era hora de matar saudade do cafezinho frio do escritório que dormia na recepção e que ia matando Idalgo aos poucos para que ele somente percebesse no derradeiro leito.

_Quer saber, não tenho saudade de casa agora, nem da mulher, nem das fofocas dela, nem... Não das crianças eu tenho sim - disse de si para si. Sorriu admirando a própria coragem e descansou por quase dois segundos a mão direita nas ancas generosas de Andréia, que estava de costas e pulou surpresa, admirada, tentando um violento tapa que não acertou. Mas sorriu marotamente nas costas de Idalgo.

Ao voltar para sua sala o Sr. Malachias o aguardava de pé atrás da cadeira.

__Idalgo, 10 minutos para o Sr. me entregar as informações que faltam ao relatório da secretária mais eficiente que eu já tive em 45 anos de carreira, ou você vai comer dez quilos de poeira de jornal até arrumar outro trabalho, melhor, outra moleza como esta aqui.

Idalgo deixou-se amolecer na cadeira sem responder, uma gota caiu-lhe do canto da boca manchando levemente a camisa creme, meneou a cabeça, suspirou.

Quantos prazeres na primeira manhã de trabalho daquele novíssimo ano!

Não acreditava que passara longe tantos dias, entregue ao peru, ao panetone, ao champanhe barato, ao “inimigo” secreto, da escola da filha, de casa, da casa do vizinho, da sogra.

Bem, cumprira todo o caminho do tormentoso “feliz ano novo”, do pernil, do lombo, do almoço oficial, do cunhado bêbedo, do bêbedo do bar que achava-se amigo intimo. Não cedera a tentação de brincar de roleta russa com o revolver calibre 38 do irmão caçula enquanto aguardava a meia noite do 31 de dezembro.

Agora merecia os prazeres do trabalho duro. Importava pouco a proximidade da festa do barulho, quando ele teria de enlouquecer pra ser normal. Agora colhia os frutos da última convenção sorvida gota a gota, grão a grão. Fora convencionalmente feliz durante todo o período das festas.

Agora ninguém roubaria dele a verdadeira felicidade, a de ser funcionário, a do gosto do sapato do chefe na ponta da língua, a de gostar do cheiro do papel mofado, do ar condicionado.

Dona Flora passou e o viu assim: feliz, alegre...quase nas nuvens, fez um ar de irritação.

_ Esse não tem jeito não, é desligado mesmo.

Idalgo fez um sinal obsceno que a fez tremer.

A vida estava restabelecida para Idalgo,

Era a sobremesa da ultima convenção, enquanto não viesse a festa da carne e do barulho.

A vida era boa, inequivocamente boa, enquanto não batesse novamente o cartão.